Vazamento de papéis dominou Julgamento Transviado de um policial






Se personagem de um filme tradicional de Hollywood, Bradley Manning teria possivelmente se comportado de outra maneira diante do tribunal militar a que foi levado no meio da semana, em Fort Meade, Maryland. Se atrás das câmeras estivesse Frank Capra, Manning, provavelmente interpretado por James Stewart, teria defendido com destemor e firmeza seu direito a tornar públicos documentos secretos que revelam malfeitos da política externa americana e arrematado seu depoimento com um discurso cheio de veemência, cobranças e patriotismo.
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Mas Manning é um milico de carne e osso, como também era o general Billy Mitchell, que nos anos 1920 foi levado a uma corte marcial por criticar a irresponsabilidade de seus superiores, e às telas, em 1955, encarnado por Gary Cooper. O general Mitchell acabou herói; o soldado raso Manning poderá passar o resto da vida atrás das grades e ainda ficar devendo se morrer antes dos 115 anos.
Já o comparei aqui ao francês Alfred Dreyfuss, injustamente acusado e condenado como traidor da pátria, imputação de que Manning afinal se livrou por falta de provas concretas. Após a audiência de quarta-feira, mais apropriado seria compará-lo ao comandante Queeg de A Nave da Revolta, não pelos delitos de que foi acusado, mas pelo desvio psiquiátrico que seu julgamento tomou. Como Queeg, Manning saiu do tribunal com crachá de desequilibrado mental.
Queeg tinha um parafuso a menos; Manning, argumentou a promotoria, com a aquiescência da defesa, sofre de graves problemas de identidade sexual, nunca se adaptou ao ambiente masculinizado da caserna. Resumindo: pirou porque é homossexual e vive deprimido e estressado por não conseguir ser hétero. Para reforçar o diagnóstico (e o veredicto agendado para a próxima semana), divulgou-se uma foto do réu travestido de mulher.
Não bastasse, Manning foi gestado por mãe alcoólatra, sempre teve problemas com a família, sofre de transtorno obsessivo compulsivo; até numa variedade de autismo o enquadraram. Com tantos distúrbios psíquicos, Manning pode até ser recolhido a um cuckoo’s nest em vez de apodrecer numa cela comum. Talvez tenha sido com a intenção de, no mínimo, reduzir sua pena que a defesa acatou e investiu nos argumentos encadeados, com outros objetivos, pela promotoria. Não lhe restavam alternativas viáveis. Manning cumpriu sua parte, desculpando-se “por ter machucado pessoas e prejudicado os Estados Unidos”. Não carecia, mas pode ter vibrado uma corda no coração da juíza.
Jornalistas que acompanharam a audiência ao vivo se surpreenderam menos com o inesperado mea-culpa do réu e sua trágica e, para muitos, patética e desmoralizante conclusão (“senti-me como se estivesse vendo Sócrates beber sua cicuta”, comentou David Swanson, na CounterPunch), do que com o silêncio em torno dos milhares de documentos que Manning vazou para o WikiLeaks, dos crimes e intrigas diplomáticas por ele expostos, das guerras evitadas, dos movimentos democráticos e não violentos por eles catalisados mundo afora. Não se discutiram as guerras do Iraque e Afeganistão, cuja contribuição ao desequilíbrio mental do réu não pode ser menosprezada. Muito menos se tocou no fato de o réu já ter tido quatro indicações ao Nobel da Paz.
Que pessoas suas ações prejudicaram? Nenhuma foi mencionada. Como afetaram o país? Caluda no tribunal. “Nenhum dano substantivo foi provocado pelos vazamentos”, afiançou o vice-presidente John Biden, algum tempo atrás, o que pode ter irritado Obama, que, desde o primeiro momento, sapecou no whistleblower o labéu de espião e traidor. “As reações aos vazamentos foram exageradas”, admitiu o ex-secretário de Defesa Robert Gates. Oficiais ouvidos em off pela Reuters confessaram que o exagero do governo e dos militares foi orquestrado, visando, acima de tudo, a intimidar o WikiLeaks e desencorajar futuros imitadores de Manning e Edward Snowden.
Rainey Reitman, da Fundação Freedom of the Press, reagiu prontamente na internet: “Manning não deve desculpas a ninguém, nós é que lhe seremos eternamente gratos” pelos benéficos embaraços que causou ao governo, ao mostrar a verdadeira face das guerras no Iraque e Afeganistão, ao revelar o número exato de vítimas no Iraque, ao denunciar casos de tortura, chacina e obstrução da informação e corrupção em diversos países.
“Eu só queria provocar um debate doméstico sobre o papel dos militares e de nossa diplomacia em geral”, disse Manning aos seus inquisidores, na primeira vez em que prestou depoimento à Justiça Militar. Provocou bem mais do que isso. Ao cumprimentá-lo, meses atrás, a revista Foreign Policy qualificou o papelório repassado por ele ao WikiLeaks de “uma ferramenta vital para o jornalismo internacional”.
Ao longo da audiência só se falou em sexo (vale dizer, em homossexualidade) e desequilíbrio mental, como se em julgamento estivesse não um sucedâneo de Daniel Elsberg (o ex-analista militar que vazou os Documentos do Pentágono, em 1971), mas um ersatz do Marquês de Sade, ou de Oscar Wilde, ou de Norman Bates. Que Manning agora nos brinde com o seu De Profundis ou seja brindado com o Nobel da Paz.

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